SUSPENSÃO CONTRATUAL E A CONTINUIDADE DOS PAGAMENTOS EFETUADOS À CONTRATADA
O contrato instrumentaliza as regras relacionadas a uma troca. Sua principal função é definir obrigações e mitigar riscos potencialmente prejudiciais à concretização do negócio, facilitando-o. Outrossim, nos chamados contratos sinalagmáticos, há o estabelecimento de direitos e deveres para ambas as partes, de forma que o cumprimento das obrigações de uma parte está relacionado ao cumprimento das obrigações da outra.
Assim, por exemplo, em contratos de prestação continuada, como comumente ocorre na hipótese da contratação de serviços terceirizados, o pagamento mensal devido pelo órgão público contratante está relacionado à execução dos serviços, pela empresa fornecedora. Eventual incompletude da prestação do serviço contratado resulta na correspondente glosa do pagamento e até, em situações injustificadas, aplicação de sanções administrativas, soluções previstas no ordenamento jurídico ou no contrato para a mitigação deste risco de inadimplemento.
Assim, em princípio, não há dúvida que o dever de efetivar o pagamento mensal firmado está condicionado à correspondente execução dos serviços pela contratada.
Em condições normais, não haveria qualquer titubeio em se afirmar que a ausência de prestação pela empresa contratada traria como reflexo necessário o não pagamento do valor mensal de remuneração estipulado e talvez até a aplicação de sanções administrativas. Contudo, como é ressabido, o mundo está enfrentando uma grave crise de saúde pública, em razão da pandemia relacionada ao Coronavírus, com evidentes reflexos imediatos e mediatos na economia e nas atividades administrativas, acabando por impactar a continuidade da execução de diversos contratos administrativos.
A excepcionalidade do momento atualmente vivenciado tem estimulado a construção de soluções não ortodoxas; contudo, para o gestor que está na ponta e precisa tomar decisões, persiste certa insegurança e preocupação. Um dos pontos de incerteza envolve a seguinte indagação: é possível efetuar o pagamento mensal para a empresa contratada, mesmo com os serviços suspensos e não sendo prestados?
As instituições e órgãos que optaram pelas suspensões totais ou parciais dos serviços, para atendimento às recomendações trazidas pela Lei federal nº 13.979/2020 e pelas autoridades públicas, precisam avaliar a legalidade e a segurança em se realizar o pagamento pelos serviços contratados, mesmo sem a efetiva prestação parcial ou integral por parte do fornecedor.
As situações identificadas são as mais diversificadas: suspensões parciais ou integrais, contratos de escopo ou contratos de prestação continuada, serviços essenciais ou serviços não essenciais, com ou sem dedicação exclusiva de mão de obra, entre outras diferenças, que se mesclam na análise concreta de cada caso, dificultando o estabelecimento de soluções normativas abstratas.
A gestão de cada um desses contratos administrativos, com os conflitos inerentes, exige soluções tópicas eficientes para atender a relação contratual travada entre a Administração-contratante e o particular-contratado.
Em algumas situações, a adequação da execução contratual com as pertinentes glosas e ajustes pode solucionar o dilema contratual. Foi neste prumo que o Ministério da Economia publicou recomendações, através de sua Secretaria de Gestão, as quais, em apertada síntese, sugeriam para os contratos terceirizados com dedicação exclusiva de mão de obra: (i) antecipação de férias, concessão de férias individuais ou decretação de férias coletivas; (ii) fixação de regime de jornada de trabalho em turnos alternados de revezamento; (iii)execução de trabalho remoto ou de teletrabalho para as atividades compatíveis com este instituto e desde que justificado, sem concessão do vale transporte, observadas as disposições da CLT; e (iv) redução da jornada de trabalho com a criação de banco de horas para posterior compensação das horas não trabalhadas.
Porém, mesmo em relação a essa espécie de contratação, diante da continuidade da situação de enfrentamento à pandemia e manutenção das restrições impeditivas à integralidade ou à parte da execução contratual, como se posicionar em relação ao pagamento dos serviços não executados?
A Advocacia-Geral da União, através do Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos da Consultoria Geral da União, responsável pela uniformização de entendimentos consultivos, com a emissão do Parecer n.º 26/2020/DECOR/CGU/AGU e do Despacho nº 00176/2020/DECOR/CGU/AGU, firmou o entendimento de que “o pagamento pela Administração dos valores correspondentes aos salários dos empregados das empresas prestadoras de serviços contínuos com dedicação exclusiva de mão de obra é juridicamente válido por força da imprevisibilidade da atual pandemia do novo coronavírus e por ser medida absolutamente coerente com o esforço de redução das interações sociais como forma de preservar vidas e evitar o colapso do sistema de saúde”.
Noutro prumo, em recente entrevista, o Ministro Benjamin Zymler, membro destacado do Tribunal de Contas da União, ponderou que não houve a instituição de um regime jurídico novo e excepcional para disciplinar os contratos administrativos em andamento e, diante da atual legislação federal, seria necessário perceber que, embora possa ocorrer alguma flexibilização, em face da magnitude da repercussão social e econômica da pandemia em curso, a gestão do contrato administrativo não tem como objetivo primário constituir-se em agente definidor de política social do Estado.
Concordamos com a ponderação feita pelo Ministro. Ademais, embora se trate de sua posição pessoal e, por enquanto, não de um precedente oficial do Tribunal de Contas da União, pela qualidade do magistrado e pelos bons argumentos, parece evidente não ser seguro ao gestor optar, sem respaldo normativo, pela benevolente disposição dos recursos públicos em favor do particular, mesmo em tempos de pandemia.
Ausente uma regulação precisa, não parece adequado, nem seguro, ao gestor público, por conta própria, tomar a decisão de manter o pagamento de prestações contratuais, sem a contrapartida do contratado. O ideal seria a instalação de Câmaras de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos, para que as soluções fossem tomadas de acordo cm as nuances do caso concreto, de maneira equilibrada, legítima, eficiente e segura, evitando colocar-se o gestor em risco de responsabilização.
Isso porque, ausente normatização autorizando-o, ao admitir a continuidade do pagamento sem a respectiva prestação, o gestor estaria dispondo de recursos públicos, em favor do particular, sem a necessária legitimidade para definir essa "política pública social".
Em alguns Estados (como São Paulo e Paraná) foram aprovadas normas locais permitindo a continuidade dos pagamentos, mesmo com a suspensão da execução do contrato. Sem entrar no mérito da correção ou incorreção desta medida, o fato é que a autorização legal estabeleceria respaldo para a continuidade do pagamento, mesmo sem a prestação contratual por parte do fornecedor, através de meio institucional apto e seguro.
Noutro quadro, a ausência desta previsão expressa, com ocorre no âmbito federal e na maior parte dos estados e municípios, torna deveras arriscada a decisão do gestor em optar pela simples continuidade do pagamento sem a pertinente prestação dos serviços, embora possam ser construídas soluções consensuais, como as suscitadas nas orientações da SEGES e nas manifestações da Advocacia Geral da União.