Por que esse tema importa?

A Lei nº 14.133/2021 elevou o programa de integridade a fator competitivo. Em caso de empate, o inciso IV do art. 60 prevê, na ordem disposta no artigo, vantagem de desempate para quem desenvolve programa de integridade, conforme orientações e critérios de aferição definidos pelos órgãos de controle. Esse critério deve ser aplicado na ordem legal de desempate e somente após observadas as preferências especiais (p. ex., ME/EPP), quando cabíveis.

 

Qual o marco normativo essencial?

Art. 60, IV, da Lei nº 14.133/2021, que define o critério de desempate relativo ao programa de integridade e sua observância sequencial.

 

Mas quais são, no âmbito da Administração Pública Federal, as normas legais vigentes sobre o tema?

Decreto Federal nº 12.304/2024. Regulamenta parâmetros e avaliação de programas de integridade nas hipóteses de: (i) contratações de grande vulto; (ii) desempate; e (iii) reabilitação. Para desempate, determina que o licitante apresente declaração de que desenvolve programa de integridade no momento da proposta (modelo a ser definido em ato da CGU). Em consórcios, todas as consorciadas devem comprovar a implantação quando aplicável (art. 5º, §2º).

Portaria Normativa SE/CGU nº 226/2025. Estabelece o procedimento e a metodologia de avaliação de programas de integridade previstos no Decreto Federal nº 12.304/2024, inclusive para as hipóteses de desempate, detalhando parâmetros de avaliação (comprometimento da alta direção; padrões de conduta e políticas; extensão a terceiros; treinamentos e comunicação, entre outros) e a operacionalização via SAMPI – Sistema de Avaliação e Monitoramento de Programas de Integridade (formulário específico). Traz regras de reconsideração e tipifica condutas sancionáveis ligadas à (não) comprovação.

Lei nº 14.133/2021 - Art. 155: A apresentação de declaração ou documentação falsa para o certame caracteriza infração administrativa (inciso VIII), ensejando o processo sancionador e as sanções do art. 156; eventual reabilitação exigirá, entre outros requisitos legais, implantação ou aperfeiçoamento do programa de integridade (art. 163 combinado com o Decreto Federal nº 12.304/2024).

Instrução Normativa SEGES/ME nº 73/2022 (pregão/concorrência eletrônica por menor preço/maior desconto) - Art. 18: Exige, no cadastramento da proposta, a declaração, em campo próprio do sistema, de que o licitante cumpre os requisitos de habilitação e que a proposta está em conformidade com o edital; a falsidade dessa declaração sujeita às sanções da Lei nº 14.133/2021. Esse dispositivo dialoga diretamente com a declaração do programa de integridade exigida pelo Decreto no contexto do desempate.

 

Mas meninas, o que é “desenvolver programa de integridade” para fins de desempate?

O Decreto Federal nº 12.304/2024, ao regulamentar a aplicação do art. 60, IV, da Lei nº 14.133/2021, deixou claro que “desenvolver programa de integridade” não pode ser interpretado como mera intenção ou como adoção de medidas pontuais de integridade. O art. 4º, inciso II, é categórico ao estabelecer que o licitante que invocar o programa de integridade como critério de desempate fica obrigado a comprovar a implantação efetiva desse programa.

Na prática, o procedimento se estrutura em duas fases complementares:

·       Momento da disputa: o “gatilho” é a declaração apresentada com a proposta, em campo próprio do sistema eletrônico (art. 18 da IN SEGES/ME nº 73/2022 e art. 6º do Decreto nº 12.304/2024). Essa declaração permite que o critério de desempate seja aplicado de imediato na sessão pública, garantindo celeridade e isonomia entre os licitantes.

·       Momento posterior (fase de comprovação): a declaração gera automaticamente a obrigação de comprovar a implantação do programa de integridade, nos termos do art. 4º, II, do Decreto nº 12.304/2024 e da Portaria Normativa CGU nº 226/2025, que define metodologia e parâmetros de avaliação. Esses parâmetros abrangem elementos objetivos e verificáveis — governança e comprometimento da alta direção (“tone at the top”), código de ética e políticas internas, due diligence de terceiros, treinamentos periódicos, canais de denúncia confiáveis e mecanismos de remediação e resposta.

Assim, ao contrário da hipótese de contratações de grande vulto ou de reabilitação de empresas sancionadas, em que a avaliação estruturada e robusta é exigência prévia para a contratação ou para a readmissão no mercado, no caso do desempate a lógica é híbrida: basta a declaração para operar o critério em sessão, mas essa declaração precisa ser confirmada por meio da comprovação da implantação efetiva do programa, sob pena de caracterizar declaração falsa.

E aqui está o ponto crucial: a apresentação de declaração inverídica enquadra-se na infração do art. 155, VIII, da Lei nº 14.133/2021 (“apresentar declaração ou documentação falsa exigida para o certame”), sujeitando o licitante a processo sancionador e às penalidades previstas no art. 156.

Em resumo: para desempate não basta dizer, é preciso provar. O programa de integridade, para ser considerado válido como critério competitivo, deve estar implantado e minimamente estruturado, de forma a atender aos parâmetros da Portaria nº 226/2025. A declaração funciona como ponto de partida; a comprovação, como condição de legitimidade.

 

E a Portaria Normativa SE/CGU nº 226/2025?

A Portaria Normativa SE/CGU nº 226/2025 é o instrumento que dá “vida prática” ao Decreto nº 12.304/2024. Ela não apenas define parâmetros de avaliação do programa de integridade, como também estabelece procedimentos, prazos, formulários (via SAMPI) e até hipóteses de reconsideração.

Diante dela, surge a dúvida: é o pregoeiro ou o agente de contratação quem avalia a consistência do programa de integridade?

Antes de responder, vale reconhecer um ponto: a vida do pregoeiro e do agente de contratação realmente não tem sido fácil desde a chegada dos novos critérios de desempate — especialmente o do Programa de Integridade.

Ainda há muita dificuldade em compreender o que exatamente é esse programa e, principalmente, como aplicá-lo na prática, especialmente nas licitações eletrônicas e diante de declarações imprecisas de empresas participantes, em especial no sistema Compras.gov.br.

Contudo, a resposta é direta: não cabe ao pregoeiro ou agente de contratação realizar uma auditoria de mérito do programa. A análise técnica e detalhada do conteúdo do programa é atribuição dos órgãos de controle interno (CGU, auditorias, unidades de integridade). Porém, cabe ao pregoeiro e ao agente de contratação verificar o cumprimento formal da obrigação assumida pelo licitante que invocou o critério de desempate.

 

Mas afinal, o que deve ser verificado pelo pregoeiro/agente de contratação?

a)    Se houve a declaração na proposta:

Conferir se, no sistema (Compras.gov.br ou outro), o licitante preencheu o campo específico de declaração previsto no art. 18 da IN SEGES/ME nº 73/2022. Essa verificação é imediata e suficiente para permitir a aplicação do critério de desempate durante a sessão pública.

Inclusive, no Compras.gov.br, quando houver duas ou mais empresas empatadas — sejam todas MPEs ou de grande porte — e não ocorrer o desempate na disputa final (nos termos do art. 60, inciso I, da Lei nº 14.133/2021), o sistema poderá aplicar automaticamente o critério do programa de integridade, desde que apenas uma das licitantes tenha declarado possuir o programa no campo próprio da proposta.

Nesse caso, a vantagem de desempate será atribuída a essa empresa, de forma automática, conforme as regras de prioridade legal.

Cabe destacar que, havendo mais de uma empresa que tenha declarado possuir programa de integridade, o empate permanece, devendo ser aplicados os demais critérios previstos no art. 60 da Lei nº 14.133/2021. No sistema Compras.gov.br, o desempate é processado automaticamente, observando a ordem legal dos critérios: primeiro, a disputa final entre as licitantes empatadas (inciso I); em seguida, o programa de integridade (inciso IV); depois, a prioridade prevista no §1º do art. 60, que, conforme o Parecer nº 00019/2025/CNLCA/CGU/AGU, não se aplica às licitações da Administração Pública Federal; e, por fim, o sorteio eletrônico, incluído pela IN SEGES/MGI nº 79/2024.

b)    Solicitação de comprovação após o desempate:

Se a vitória do licitante decorreu do critério do programa de integridade, o pregoeiro ou agente de contratação deve abrir prazo para apresentação da comprovação.

E a pergunta é: qual prazo? O ideal é que o edital traga essa informação de forma expressa, mas, na ausência de previsão, deve ser oportunizado um prazo razoável — por exemplo, 24 horas, conforme o princípio da razoabilidade e o tratamento isonômico entre licitantes.

Essa comprovação deve ser realizada pela própria empresa licitante, mediante o preenchimento do formulário eletrônico no SAMPI, com envio das evidências exigidas pela Portaria. Entre elas, podem constar: código de ética, políticas internas, registros de treinamentos, canais de denúncia ativos e evidências de governança.

O pregoeiro ou agente de contratação não envia o formulário, tampouco acessa o sistema SAMPI — ele apenas verifica se o licitante realizou o envio e apresentou o comprovante (protocolo, print ou número de submissão).

Por fim, conforme o art. 37, IV, da Portaria nº 226/2025, cabe à Administração comunicar à Controladoria-Geral da União (CGU) o licitante que efetivamente usufruiu do benefício do desempate com base no programa de integridade. Como se dará essa comunicação, bem como quem deverá formalizar essa comunicação para CGU, ainda não sabemos.

c)    Análise preliminar da documentação:

O pregoeiro ou agente de contratação não analisa o mérito da efetividade do programa — sua atuação é formal e documental. Cabe apenas verificar se os elementos básicos foram apresentados e se correspondem ao que a Portaria exige.

d)    Encaminhamento a unidade responsável por instaurar processo de responsabilização, se necessário:

Se houver indícios de falsidade, inconsistência grave ou ausência de comprovação, o pregoeiro deve registrar o fato em ata e encaminhar o processo à unidade responsável pela apuração. Essa conduta pode caracterizar infração administrativa, nos termos do art. 29, VII, da Portaria nº 226/2025 e do art. 155, VIII, da Lei nº 14.133/2021.

e)    Em resumo, o passo a passo do pregoeiro/agente de contratação:

1.     Durante a sessão: verificar a declaração no sistema → aplicar o critério de desempate.

2.     Após a sessão: notificar o vencedor para apresentar comprovação → conferir a entrega formal (documentos, formulários, evidências).

3.     Se não comprovar ou for inconsistente: registrar nos autos, comunicar unidade responsável e recomendar a instauração de processo sancionador conforme art. 155 da Lei nº 14.133/2021.

Essa orientação é essencial para dar um pouco mais de segurança ao pregoeiro e ao agente de contratação: verifica-se a forma, não o conteúdo.

 

Conclusão

A consolidação do programa de integridade como critério de desempate nas licitações públicas marca um avanço institucional relevante na promoção da ética empresarial e na indução de boas práticas no mercado fornecedor. O que antes se limitava a um discurso de conformidade normativa passa, com o Decreto nº 12.304/2024 e a Portaria CGU nº 226/2025, a ser um fator efetivo de competitividade e de diferenciação entre licitantes.

 

No entanto, essa inovação normativa exige maturidade técnica e segurança operacional por parte da Administração. O papel do pregoeiro e do agente de contratação não é o de auditor do conteúdo do programa, mas o de guardião da formalidade e da boa-fé objetiva que devem reger o certame. O que se espera desses agentes é a verificação diligente da declaração e da posterior comprovação, assegurando que a aplicação do critério ocorra de forma isonômica e transparente.

 

Mais do que uma ferramenta de desempate, o programa de integridade representa um divisor de águas na relação entre Estado e mercado. Ele reforça o caráter pedagógico da contratação pública e orienta o setor privado a internalizar valores de integridade, conformidade e governança. Assim, a licitação pública deixa de ser apenas um processo competitivo e se transforma em um instrumento de política pública, capaz de induzir transformações estruturais e fortalecer a confiança mútua entre Administração e fornecedores.

 

Em síntese, o critério de desempate previsto no art. 60, IV, da Lei nº 14.133/2021, regulamentado pelo Decreto nº 12.304/2024 e pela Portaria CGU nº 226/2025, consagra a integridade como valor competitivo e eleva o nível de responsabilidade compartilhada na execução das contratações públicas. O futuro da gestão pública ética passa, necessariamente, por esse amadurecimento institucional.

 

Referências

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Institui normas gerais de licitação e contratação para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 1 abr. 2021.

BRASIL. Decreto nº 12.304, de 9 de dezembro de 2024. Regulamenta a aplicação de programas de integridade nas contratações públicas e dispõe sobre sua utilização como critério de desempate e de reabilitação.

BRASIL. Portaria Normativa SE/CGU nº 226, de 9 de setembro de 2025. Estabelece a metodologia de avaliação de programas de integridade e os procedimentos para fins de desempate, contratações de grande vulto e reabilitação.

BRASIL. Instrução Normativa SEGES/ME nº 73, de 30 de setembro de 2022. Dispõe sobre regras e diretrizes para a realização de pregões e concorrências eletrônicas.